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Com a Palavra ...Walter Pinto Jr.: Vidas Pretas no Brasil Contemporâneo
Walter Adan Pinto Júnior. Coordenador de Captação de Ideias e de Projetos | Prefeitura de Salvador Mestre em Desenvolvimento e Gestão Social (CIAGS/UFBA)
Em 20/11/2019
ASJ- Segundo o Atlas da Violência 2019, a taxa de homicídios de
mulheres negras cresceu 29,9% e de mulheres não-negras cresceu 4,5%.
Isso poderia nos remeter à ideia de que o feminicídio vem
acompanhado não só de machismo, mas também de racismo?
Walter
Pinto – Precisamos refletir sobre a composição social brasileira
e, ao perceber que as mulheres negras estão na base da nossa
pirâmide, começamos a compreender que a interseccionalidade das
categorias de análise gênero e raça, subjugam estas mulheres a uma
condição de amplificação das desigualdades em relação às
demais mulheres, aos homens negros e, sobretudo, aos homens não
negros. Se as mulheres, por ocasião do sexismo, são mais
vulneráveis que os homens, as mulheres negras estão sujeitas a
todas as formas de violação de direitos. São elas que menos
estudam, recebem as menores remunerações, ocupam a maior parte da
categoria desocupação, para além da violência e feminicídio aqui
já discutido. Nesse sentido, os alarmantes dados do Atlas da
Violência ratificam o conceito de racismo estrutural. Como bem disse
Angela Davis, “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura
da sociedade se movimenta com ela”.
ASJ-
Ainda nos atendo às taxas de homicídio, segundo o Atlas da
Violência 2019, 75,5% das vítimas de homicídio no Brasil, em 2017,
eram negras. Diante dessa estatística tão alarmante, podemos
considerar a existência de uma necropolítica (termo de Mbembe)
racista, ou seja, de um Estado de Morte no sistema de Segurança
Pública do Brasil?
WP
– Antes até de Achille Mbembe, Foucault já estendia seus estudos
sobre o biopoder, enquanto relação de poder, domínio e o direito
de matar, deixar viver ou expor à morte. Mas Mbembe, contemporâneo
autor, negro, camaronês [destaco o negro pois precisamos nos
reconhecer em diversos espaços], discute que o conceito de Foucault
não é mais suficiente para explicar as formas contemporâneas de
subjugação e mostra como o poder da soberania agora é encenado
através da criação de zonas de morte, onde a morte se torna o
último exercício de dominação e a principal forma de resistência.
Os contornos da segurança pública brasileira sofrem, então,
influência do Brasil escravocrata, do ranço do capataz, da
criminologia de Lombroso e Nina Rodrigues, do racismo estrutural e
institucional. Agentes policiais, em sua maioria negros, personificam
um Estado racista que aponta e atira em no suspeito, negro. Falamos
de genocídio jovem negro e não é por acaso, as estatísticas
apresentam essa triste realidade.
ASJ-
Grada Kilomba, renomada escritora negra, traz os conceitos de sujeito
e objeto em sua obra Memórias da Plantação, ressaltando o quanto o
sujeito negro foi objetificado ao longo dos séculos e que hoje ele
vem tornando-se sujeito da sua história, da sua fala. Você acredita
que o/a negro/a no Brasil já conquistou uma visibilidade
significativa na sociedade ou isso ainda está distante?
WP
– Não li esse livro, mas discutir visibilidade negra significa
reconhecer e superar as seculares distorções geradas a partir da
escravização e, nesse sentido, estamos falando para além das ações
afirmativas e políticas de reparação, requer assumir a existência
das assimetrias socioeconômicas entre negros e não negros e
garantir um Estado de direito para as populações negras. Não
podemos negar a existência das diversas conquistas sociopolíticas e
como você pergunta, da nossa fala, mas até onde ressoa a fala de um
negro?
ASJ-
Os negros /as no Brasil têm conquistado cada vez mais espaço nos
mundos acadêmico, literário. Você acredita que a descolonização
do conhecimento, a partir da visibilidade dada às narrativas da
pessoa negra, pode ser um caminho para diminuir o racismo no Brasil?
WP – Precisamos aprender com outros óculos cognitivos, para
tanto, é necessário apreender e ensinar sob estes novos óculos.
Uma nova história, geografia, biologia e literatura devem ser
apresentados na nova escola. Outros povos, nações e heróis
precisam ser ensinados também. Um continente africano com riquezas
culturais, sociais e tecnológicas pode emoldurar uma percepção
diferenciada do negro e de sua origem. Nasce assim a possibilidade de
afirmar uma identidade negra sem precedentes, eu diria, não
desconsiderando todos avanços oriundos do movimento negro.
ASJ-
A branquitude olhou para si no período colonial como o modelo ético,
belo, civilizado. Você acredita que a sociedade brasileira ainda
carrega esses sujeitos tomados de branquitude que não se incomodam
com as consequências sociais e psicológicas provocadas por suas
ações racistas?
WP
– O mês de novembro marca um período em que são reforçados a
beleza, os valores e a cultura negra. Há um dia específico em que a
consciência negra é pauta das rodas entre amigos, negros e não
negros, stories e outas postagens nas mídias sociais, agendas
governamentais, campanhas publicitárias, mas na sequência, nos dias
que seguem vem o silêncio!? Não devemos afirmar a negritude e tudo
que ela evolve num único período do ano. Viver a afirmação é um
ato político diário. A antítese da singular beleza negra não pode
ser cruel ao limitar crianças negras aos seus cabelos crespos,
mulheres e homens negros à objetificação e hiper-sexualizados de
seus corpos. Logo, ainda que hoje percebamos campanhas publicitárias
com modelos negros e, obviamente, produtos desenvolvidos para esse
público, não devemos nos afastar que o capitalismo criou esse nicho
consumidor e para tal estratégias de venda agressivas. A tese da
branquitude oferece a esse racismo de marca atenuações às
discriminações de acordo a variação da tonalidade do tom de pele,
servindo de abrigo para diversos pardos (socialmente brancos), que
vítimas da sociedade racista refutam a afirmação racial sob o gozo
de um falso e momentâneo privilégio branco.
ASJ- Racismo é um problema branco. Negros não são racistas.
Você concorda com essa afirmativa?
WP
– Afirmativas complexas! Eu diria que o racismo é um problema
conjuntural e de todos nós, quando afirmo isso eu responsabilizo
todos por uma nova construção social. Não basta se apresentar como
não-racista, há de sermos antirracistas. Não existe possibilidade
para que os negros sejam racistas, entendendo que o racismo é um
conjunto de teorias e crenças que estabelecem uma hierarquia entre
as raças e etnias, portanto não há espaço, ou um mínimo de
possibilidade, para a falácia do racismo reverso.
ASJ-
Grada Kilomba ressalta a importância da oposição ao projeto
colonialista implantado nas sociedades que sofreram colonização,
e enfatiza que essa oposição deve vir acompanhada da reinvenção.
É necessário reinventar-se, fazer-se! Como isso tem sido construído
pelo negro brasileiro?
WP
– Se resistir puder ser considerado reinvenção, nos reinventamos
diuturnamente. Sobreviver mantendo a graça, o gingado e o batuque
negros, cantada em verso e prosa, nessa sociedade racista, nos torna
resilientes de nossa própria existência. Estamos mudando a cara do
ensino superior, pela primeira vez somos maioria nas universidades
públicas brasileiras, essa é uma das mudanças mais significativas,
pois quando construímos conhecimento e ciência damos um passo para
a quebra de paradigmas sociais e mudanças desse status quo branco,
rico, masculino e heterossexual. Quando a juventude na quebrada
começa a erguer a cabeça e fazer um novo movimento, de base
comunitária, mas que reverbera em todas as mídias, também estamos
mudando. Quando nossa arte é difundida e consumida, sem apropriação
cultural, estamos mudando. Ou seja, estamos provocando uma série de
transformações sociais e ocupando diversos espaços na sociedade,
reinventando e fazendo o mover necessário.